Literatura para uma vida cristã sadia

A direção de Deus - A. W. Pink

A direção de Deus

A. W. Pink

 

Há poucos assuntos a respeito do lado prático da vida cristã que sejam tão conhecidos pelos crentes como a questão de ser “dirigido pelo Senhor” em todos os seus caminhos; embora aconteça que, quando alguma decisão importante precisa ser tomada, eles estejam em dúvida sobre como conseguir a “mente do Senhor”. Já lemos muitos panfletos e livretes sobre o assunto, mas trataram do assunto de forma tão vaga e geral, que obtivemos pouca ou nenhuma luz e ajuda ao lê-los. Constatamos que essa também foi a experiência de muitos outros, e com certeza existe a premente necessidade hoje de algum artigo claro e específico sobre o assunto.

Faz já alguns anos que este escritor está convencido que uma das coisas que contribui muito para envolver este assunto em mistério na mente de muita gente é o mau uso e até mesmo a perda dos termos que são usados para referir-se à direção de Deus. “Isso está de acordo com a vontade de Deus?”, “Estou sendo movido pelo Espírito Santo?”, “Você está sendo guiado pelo Senhor neste assunto?” — Enquanto se usarem expressões como essas, as pessoas de mente simples permanecerão perplexas e nunca jamais chegarão a certeza alguma. Essas expressões são tão comuns nos círculos religiosos, que provavelmente muitos dos nossos leitores estarão surpresos com o fato de nós as estarmos contestando. Queremos deixar claro que não condenamos essas expressões como erradas; antes, nossa intenção é mostrar que elas são intangíveis demais para a maioria das pessoas, e que precisam ser mais claramente definidas.

Que alternativa sugerimos, então? A seguinte: a cada decisão que tomarmos, cada plano que elaborarmos, cada ação que executarmos, façamos a seguinte pergunta: Isso está em harmonia com a Palavra de Deus? É isso que as Escrituras ordenam? Isso se ajusta com a regra que Deus nos deu, de acordo com a qual devemos andar? Isso está de acordo com o “exemplo” que Cristo nos deixou para seguir? Se isso estiver em harmonia com a Palavra de Deus, então forçosamente estará “de acordo com a vontade de Deus”, porque a Sua vontade é revelada na Sua Palavra. Se estou fazendo aquilo que as Escrituras ordenam, então com certeza estou sendo “movido pelo Espírito Santo”, porque Ele nunca dirige ninguém a agir de forma contrária às Escrituras. Se a minha conduta se ajusta à regra da justiça (os preceitos e mandamentos da Palavra), então com certeza estou sendo “guiado pelo Senhor”, uma vez que Ele guia somente “pelas veredas da justiça” [1] (Sl 23.1,3). Muito da imprecisão mística e da confusa incerteza será removida se o leitor substituir “Isso está de acordo com a vontade de Deus?” pela simples e mais tangível pergunta “Isso está de acordo com a Palavra de Deus?”

Deus, em Sua infinita condescendência e em Sua sublime graça, nos deu a Sua Palavra com este preciso propósito: que não precisemos tropeçar cegamente por aí, sem saber o que Lhe agrada e o que Lhe desagrada, mas que possamos conhecer a Sua “mente”. Essa Palavra divina nos é dada não para mera informação, mas para nos regular a conduta: para nos iluminar a mente, nos moldar o coração, e dirigir toda a nossa conduta. Essa Palavra divina nos fornece um mapa infalível para nos guiar no perigoso mar da vida, o qual — se sinceramente e diligentemente o seguirmos — nos livrará das terríveis rochas e dos recifes submersos, e nos dirigirá a salvo ao porto celestial. Nessa Palavra estão todas as instruções de que precisamos para cada problema, cada emergência com que possivelmente possamos nos deparar. Essa Palavra nos foi dada “a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.17). Oh! Quão gratos e alegres deveríamos ser que o Deus Triúno nos tenha favorecido com tal Palavra!

 “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para os meus caminhos” (Sl 119.105). A metáfora usada aqui vem de um homem que caminha numa estrada difícil e perigosa numa noite escura, com premente necessidade de uma lâmpada para mostrar-lhe onde firmar os pés, para poder continuar a viagem a salvo e confortavelmente, evitando dano e destruição. Essa mesma figura é usada outra vez no Novo Testamento: “Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso” (2Pe 1.19). O “lugar tenebroso” é este mundo, e é somente à medida que prestarmos atenção à Palavra, à “luz” que Deus nos deu, que seremos capacitados a perceber e a evitar o caminho largo que conduz à destruição, e a discernir o caminho estreito, o único que conduz à vida.

É apropriado notar que o versículo citado acima declara abertamente que Deus pôs a Sua Palavra em nossas mãos com um propósito intensamente prático, ou seja, para dirigir nosso andar, para regular nosso comportamento. Isso nos mostra de imediato qual deve ser o primeiro e o principal uso que devemos fazer dessa dádiva de Deus. Para o viajante, pouco proveito lhe traz um acurado exame do mecanismo de uma lâmpada, ou ficar parado admirando a beleza de suas formas; é preferível que ele a tome e faça uso prático dela. Há muitos hoje que são zelosos na leitura “da letra da Escritura”, e muitos se encantam com as evidências da sua autoria divina, mas são poucos os que percebem o propósito fundamental por que Deus deu as Escrituras, são poucos os que fazem uso prático delas — dirigindo os detalhes da vida com os seus preceitos e mandamentos. Elogiam a Lâmpada, mas não andam conforme a luz dela.

Nossa primeira necessidade e tarefa como criancinhas é aprender a andar. O leite que recebemos de nossas mães era um simples meio para um determinado fim: nutrir a vida do bebê, fortalecer-lhe os membros de forma que servissem a um uso prático. Assim também é espiritualmente. Quando somos gerados de novo e somos alimentados pelo Espírito com o genuíno leite da Palavra, nossa primeira necessidade e tarefa é aprender a andar, andar de forma adequada aos filhos de Deus; e isso só se aprende à medida que conhecemos a vontade do Pai como ela é revelada nas Escrituras Sagradas. Por natureza, desconhecemos por completo tanto a vontade dEle para nós, como aquilo que promove o que é mais útil para nossa vida. É um fato solene e muito humilhante que o homem é a única criatura desta terra desprovida de inteligência para saber como agir, é o único que necessita de ensino quanto ao que é bom e o que é mau para ele.

Todas as ordens inferiores da criação foram favorecidas com um instinto que as conduz a agir com prudência, evitando aquilo que é prejudicial, e a seguir aquilo que é bom. Mas isso não acontece com o homem. Animais e pássaros não precisam ser ensinados sobre quais ervas e quais frutas são venenosas e quais não são: eles não precisam de freio para não comer demais ou beber demais — você nem mesmo consegue forçar um cavalo ou uma vaca a exagerar ao ponto de passar mal. Até mesmo as plantas viram a face para a luz e abrem a boca para aproveitar a chuva. Mas o homem decaído não tem nem mesmo o instinto dos irracionais, e é comum aprender por meio de experiências dolorosas aquilo que lhe faz mal e o prejudica; como alguém já observou corretamente: “A escola da experiência sai caro” — as mensalidades são altas. É lamentável que há tantos que descobrem isso tarde demais: quando já arruinaram a saúde sem que haja conserto, quando já devastaram os bens materiais sem possibilidade de recuperá-los outra vez.

Talvez alguém retruque ao que dissemos acima: Mas o homem é dotado de consciência. É verdade, mas de quão pouca utilidade ela é, se não for iluminada pela Palavra e convencida pelo Espírito! O entendimento do homem foi de tal forma obscurecido pelo pecado, e a estultícia está de tal forma ligada ao seu coração desde criança (Pv 22.15), que, enquanto não for instruído, ele não saberá o que Deus requer dele, nem o que é melhor para si mesmo. Esta é a razão por que Deus nos deu a Sua Palavra: para sabermos o que Ele com justiça exige de nós, para nos informar aquilo que destrói a alma, para revelar as armadilhas que Satanás usa para capturar e matar tanta gente, para nos apontar o caminho da santidade, o único que conduz ao céu (Hb 12.14), para nos instruir quanto aos mandamentos que temos de observar se queremos entrar e andar nesse caminho.

Nossa primeira responsabilidade, então, e nosso primeiro alvo, é receber as Escrituras para verificar qual é a vontade revelada de Deus para nós, quais são os caminhos em que Ele nos proíbe andar, e quais são os caminhos agradáveis à Sua vista. Há muitas coisas proibidas na Palavra que nem a nossa razão nem a nossa consciência jamais haveriam de descobrir. Por exemplo, aprendemos que “aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus” (Lc 16.15); que “a amizade do mundo é inimiga de Deus” (Tg 4.4); que “peca quem é precipitado” (Pv 19.2). Há também muitas coisas ordenadas que somente podem ser conhecidas à medida que nos familiarizamos com o que elas significam. Por exemplo: “não te estribes no teu próprio entendimento” (Pv 3.5); “Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem não há salvação” (Sl 146.3); “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5.44).

Os exemplos acima são apenas alguns dentre centenas de outros. Agora, é evidente que a Palavra de Deus não pode ser uma lâmpada para nossos pés, uma luz para nosso caminho, a não ser que estejamos familiarizados com o seu conteúdo, e particularmente, até que estejamos informados das regras práticas que Deus nos deu para guiar o nosso andar por meio delas. Por conseguinte, também deveria ser óbvio que a primeira necessidade do cristão não é aprofundar-se nas complicações e nos mistérios das Escrituras, estudar profecias, nem mesmo entreter-se com os maravilhosos tipos ali encontrados; em vez disso deve concentrar-se naquilo que vai instruí-lo sobre a forma de conduta agradável ao Senhor. As Escrituras Sagradas nos foram dadas, antes de tudo, não para nosso prazer intelectual, nem para admirá-las, mas para regular a nossa vida por meio delas. Também os preceitos e mandamentos, as advertências e os consolos que estão ali não nos foram dados simplesmente para nossa informação: eles devem ser traduzidos em prática, eles exigem obediência inquestionável.

“Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Js 1.8). Deus não deve nada a ninguém: em guardar os Seus mandamentos “há grande recompensa” (Sl 19.11). Parte dessa “recompensa” é o livramento do engano da falsa aparência das coisas, de fazer avaliações erradas, de adotar medidas imprudentes. Parte dessa “recompensa” é a aquisição de sabedoria, de forma que escolhemos aquilo que é bom, agimos com prudência, e seguimos os caminhos que promovem a justiça, a paz e a alegria. Aquele que entesoura no coração os preceitos divinos e diligentemente procura andar sob sua orientação, haverá de escapar dos males que destroem os seus companheiros.

 “Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo” (Jo 11.9). “Andar de dia” significa estar em comunhão com Aquele que é luz, é conduzir-nos de acordo com a Sua vontade revelada. À medida que o cristão anda no caminho que lhe é ordenado na Palavra, ele haverá de andar seguro e confortavelmente: por meio da luz dessa Palavra o caminho diante dele é plano, e ele é preservado de cair sobre os obstáculos que Satanás põe para lhe provocar uma queda. “... mas, se andar de noite, tropeça, porque nele não há luz” (v. 10). Aqui está o solene contraste: aquele que anda de acordo com os ditames das suas próprias paixões, seguindo o conselho e o exemplo dos que não temem a Deus, cai nas armadilhas do diabo, e perece. “Não há luz” em tal pessoa, visto que não é regulada pelo Sol da Justiça.

“Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida” (Jo 8.12). Uma coisa é ter “vida”, outra diferente é apreciar a “luz da vida” — isso só se obtém seguindo a Cristo. Repare bem o tempo do verbo [2]: não é “quem me segue” ocasionalmente e de forma intermitente, mas “quem me segue” de forma firme e contínua. E a promessa para este último é que ele “não andará nas trevas”. Mas o que significa “seguir” a Cristo? Primeiro, e principalmente, é esvaziar-se da vontade própria, visto que “também Cristo não se agradou a si mesmo” (Rm 15.3). Isso é absolutamente essencial; a vontade própria e agradar-se a si mesmo têm de ser mortificados se eu quiser me ver livre de andar nas trevas.

Cristo nos revela, em Mateus 16.24, uma condição imutável: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me”. Não é possível seguir a Cristo enquanto não se nega a si mesmo e se aceita a cruz como a característica distintiva do discipulado. O que significa “negar a si mesmo”? Significa repudiar nossa própria bondade, renunciar nossa própria sabedoria, não confiar em nossa própria força, desprezar totalmente nossa própria vontade e desejos, de forma que “os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Co 5.15). O que significa “tomar a nossa cruz”? Significa uma prontidão para suportar o ódio e o desprezo do mundo, render voluntariamente nossa vida a Deus, usar todas as nossas aptidões para a Sua glória. A “cruz” representa obediência amorosa ao Senhor, sem restrições, porque está escrito a respeito dele que “a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz”. É somente à medida que negamos os nossos próprios interesses, com todos os nossos desejos, e à medida que o nosso coração esteja dominado pelo espírito do Calvário, que estamos preparados a “seguir” a Cristo.

E o que se quer dizer com “seguir” a Cristo? O seguinte: tomar sobre nós o Seu “jugo” (Mt 11.29) e viver em completa sujeição a Ele. É dobrar-se inteiramente ao Seu senhorio, obedecer aos Seus mandamentos, e dessa forma servi-lo de verdade. É procurar fazer apenas aquilo que é agradável à Sua vista. É imitar o “exemplo” que Ele nos deixou, e Ele em todas as coisas sujeitou-Se às Escrituras. E à medida que nós O “seguimos”, não “andaremos nas trevas”: não, estaremos antes em alegre comunhão com Ele que é a “verdadeira luz”. Para nosso encorajamento — uma vez que eles eram homens de sentimentos iguais aos nossos —  está registrado que Calebe e Josué “perseveraram em seguir ao SENHOR” (Nm 32.12): uma vez que puseram a mão no arado, não olharam para trás; consequentemente, em vez de perecer no deserto com os seus companheiros desobedientes, entraram na terra prometida.

Por isso, o grande negócio, a tarefa da vida do cristão é regular a própria vida pela Palavra escrita, e conformar a sua conduta aos preceitos dela, e ao exemplo deixado pela Palavra Encarnada. À medida que procede assim, na proporção em que faz isso, ele se vê livre da escuridão da sua mente natural, liberto da insensatez do seu coração corrupto, torna-se livre da conduta louca deste mundo, e foge das ciladas do diabo. “... os justos são libertados pelo conhecimento” (Pv 11.9). Sim, grande é a “recompensa” de guardar os mandamentos de Deus: “Então, entenderás justiça, juízo e equidade, todas as boas veredas. Porquanto a sabedoria entrará no teu coração, e o conhecimento será agradável à tua alma. O bom siso te guardará, e a inteligência te conservará” (Pv 2.9-11).

 “Por esta razão, não vos torneis insensatos, mas procurai compreender qual a vontade do Senhor” (Ef 5.17). Fica claro neste versículo que é tanto direito como dever do cristão saber qual é a vontade de Deus para ele. Os filhos de Deus não podem nem agradá-lo nem glorificá-lo se andam em ignorância ou procedem cegamente. Não foi Cristo que disse aos Seus amados discípulos: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer” (Jo 15.15)? Se, então, estamos às escuras quanto à maneira que devemos proceder, fica evidente que estamos vivendo muito abaixo dos nossos privilégios. Sem dúvida, a maioria dos leitores haverá de concordar com essas afirmações, mas a questão que mais preocupa a maioria deles é: Como nos certificarmos da vontade do Senhor com respeito aos inúmeros detalhes da vida diária?

Antes de tudo, reparemos que a exortação de procurar compreender “qual a vontade do Senhor” vem antecedida de “Por esta razão, não vos torneis insensatos”. Essa palavra “insensatos” não significa aqui simples ignorância ou falta de conhecimento; se fosse assim, as duas metades do versículo estariam simplesmente expressando o mesmo pensamento na forma negativa e depois na forma positiva. Não, a palavra “insensatos” ali significa “com falta de bom senso”[3]. E a palavra “néscio”, nas Escrituras, não significa aquilo que ela significa no linguajar comum das pessoas. Nas Escrituras, o “néscio” não é apenas o deficiente mental, mas é o homem que não leva Deus em consideração na sua vida, que age independentemente dele. Temos de manter isso bem claro na mente à medida que procuramos chegar ao entendimento da segunda parte de Efésios 5.17.

Repare, também, que Efésios 5.17 começa com a expressão “Por esta razão”, a qual nos remete de volta àquilo que vem logo antes. Ali encontramos “Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, e sim como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus” (vv. 15-16). A não ser que essas exortações recebam atenção  reverente e diligente, será impossível procurar “compreender qual a vontade do Senhor”. A não ser que nosso andar seja correto, não pode haver discernimento espiritual da vontade de Deus para nós. E isso traz de volta o pensamento central do nosso item anterior. Nosso andar diário tem de ser dirigido pela Palavra de Deus, e na proporção em que isso acontece haveremos de ser guardados na Sua vontade e preservados da insensatez e do pecado.

 “… bom entendimento têm todos os que cumprem os seus mandamentos”[4] (Sl 111.10). Um “bom entendimento” pode ser definido como instinto espiritual. Todos entendemos o que se quer dizer por “instinto”, quando pensamos na habilidade que o Criador favoreceu animais e aves: aquela faculdade interior que os induz a evitar o perigo e os move a procurar aquilo que lhes produz bem-estar. O homem recebeu, originalmente, um instinto similar, embora fosse de ordem muito superior ao que as criaturas inferiores possuem. Mas por ocasião da Queda, ele o perdeu, em grande parte; e, na sequência das muitas gerações depravadas, o seu “instinto” se tornou mais e mais fraco, até que vemos agora a vasta maioria dos nossos semelhantes se conduzindo com muito menos inteligência do que os animais irracionais do campo — lançando-se loucamente à destruição, coisa que o instinto dos irracionais evitaria: agindo insensatamente, sim, loucamente, de forma contrária até mesmo ao “bom senso”, conduzindo seus negócios e interesses sem nenhum cuidado.

Por ocasião da regeneração, Deus concede aos Seus eleitos “espírito ... de moderação”[5] (2Tm 1.7), mas esse “espírito” precisa ser cultivado, necessita de treinamento e instrução. A instrução necessária para esse espírito de moderação se encontra na Palavra. É dessa Palavra que podemos aprender quais são as coisas benéficas para nós, e quais são as que nos causam dano; quais são as coisas a que devemos aspirar e de quais devemos fugir. À medida que colocamos em prática os preceitos das Escrituras, e à medida que prestamos atenção às suas proibições e advertências, recebemos capacidade de julgar as coisas como elas de fato são, vemo-nos livres de ser enganados pelas falsas aparências, somos guardados de cometer “erros” tolos. Quanto mais firmemente andarmos conforme a Palavra, tanto mais perfeitamente isso se dará conosco: um “bom senso” ou instinto espiritual se formará em nós, de forma que haveremos de conduzir nossos afazeres com discernimento e ornaremos a doutrina que professamos[6].

O homem santo preza tanto esse instinto espiritual ou essa mente sã, que ora assim: “Ensina-me bom juízo e conhecimento, pois creio nos teus mandamentos” (Sl 119.66). Ele entende que isso só pode aumentar à medida que ele é divinamente “ensinado”, isto é, quando o Espírito aplica a Palavra ao seu coração, abrindo-lhe o significado dela, trazendo-a à sua memória quando necessário, e capacitando-o a fazer uso apropriado dela. Mas repare bem que nessa oração a petição tem como suporte uma justificativa: “pois creio nos teus mandamentos”: “creio” não apenas como assentimento intelectual, mas eu os aceito com minhas afeições. É somente nesse caso que uma petição dessas é sincera. Há uma conexão inseparável entre as duas coisas: se amamos os mandamentos de Deus, podemos contar que Ele vai nos ensinar “bom senso”.

Como dissemos acima, o “néscio” não é o mentalmente deficiente, mas aquele que deixa Deus de fora dos seus pensamentos e planos, que não se preocupa se a sua conduta agrada a Deus ou não: o “néscio” é uma pessoa ímpia, sem Deus. Em sentido oposto, os “sábios” (nas Escrituras) não são os altamente intelectuais ou aqueles que possuem educação brilhante, mas são aqueles que honestamente procuram pôr Deus em primeiro lugar em seu coração e na sua vida. E Deus “honra” aqueles que O honram (1Sm 2.30): Ele lhes dá “bom senso”. É verdade que isso não se adquire num só dia: é “um pouco aqui e um pouco ali”. Contudo, quanto mais completamente nos rendemos a Deus, mais os princípios da Sua Palavra regularão nossa conduta, mais rapidamente cresceremos na sabedoria espiritual. Quando dizemos que esse “bom senso” não se adquire todo de uma só vez, não queremos dizer que é preciso uma vida inteira antes que ele se torne nosso — embora, lamentavelmente, isso aconteça com muitos. Mas na verdade não precisa ser assim; alguns que se converteram há meros dois ou três anos são, muitas vezes, mais espirituais, mais santos, e possuem mais sabedoria espiritual do que aqueles que se converteram anos antes deles.

O cristão cresce regularmente em sabedoria espiritual, e adquire um agradável “gosto” que o capacita a julgar o certo e o errado com um grau de facilidade e exatidão como um ouvido musical julga os sons, de forma que raramente erra. Aquele que tem a Palavra regendo em seu coração é influenciado por ela em todas as suas ações, e pelo fato de ser a glória de Deus o grande alvo que ele tem em vista, ele não está sujeito ao erro por muito tempo. Além do mais, Deus prometeu mostrar-se forte para com aquele cujo coração é totalmente dele[7], e isso Ele faz ordenando as Suas providências e fazendo com que todas as coisas contribuam juntamente para o seu bem[8].

 “São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso” (Mt 6.22). Essa linguagem é figurativa, sem dúvida; contudo não é difícil descobrir o seu significado: aquilo que o olho é para o corpo, o coração é para a alma, porque é do coração que “procedem as fontes da vida” (Pv 4.23). As ações do corpo são dirigidas pela luz recebida dos olhos: se os olhos são “simples”, isto é, sadios e desimpedidos, se percebem os objetos como eles realmente são, então o corpo inteiro tem luz para dirigir os seus membros, e o homem se move com segurança e conforto. De forma semelhante, se o coração não estiver dividido, se estiver decidido a agradar a Deus em todas as coisas, então a alma terá visão clara, discernirá a verdadeira natureza das coisas, formará um sadio julgamento quanto ao que valem, escolherá sabiamente, e se comportará com prudência. Enquanto o coração está correto para com Deus, a alma será dotada de sabedoria espiritual, de forma que haverá abundante luz para nosso caminho.

 “... se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas serão!” (Mt 6.23). Aqui está o solene contraste. Se a visão dos nossos olhos físicos é defeituosa, se uma catarata turvar a vista, então nada será visto com clareza, tudo será confusão, e o homem tropeça como se estivesse no escuro, sempre sujeito a se perder e a se meter em perigo. Da mesma forma, quando o coração não está certo com Deus, onde o pecado e o egoísmo dominam, a alma inteira está debaixo do poder dominador das trevas — a depravação inata; e, em consequência, o julgamento é ofuscado, de forma que não pode discernir corretamente entre o bem e o mal, não pode divisar a camuflagem das armadilhas de Satanás, e assim fatalmente acaba enganado por elas. A própria “luz” que está no homem decaído — a sua “razão” — é controlada por sua própria lascívia; dessa forma, grandes são as suas “trevas”.

Deve-se notar que os versículos que acabamos de considerar foram proferidos por Cristo imediatamente após o que Ele disse em Mateus 6.19-21 com respeito à correta e sábia forma de juntar tesouros. Era como se Ele Se antecipasse e respondesse a uma pergunta dos discípulos: Se é tão importante que não acumulemos tesouros na terra, e sim nos céus, então por que os homens considerados mais “astutos” e que são considerados por seus companheiros como os mais “bem sucedidos” — por que exatamente esses são os que buscam tesouros terrenos em vez de buscarem os celestiais? A essa pergunta Jesus replicou: não se admirem com isso — eles não sabem o que fazem: são como cegos coletando seixos, achando que são valiosos diamantes.

Cristo lança, aqui, muita luz naquilo que pretendemos tratar agora. Aqueles que fixaram o coração nas coisas deste mundo, estão gastando as energias naquilo que não lhes aproveitará nada quando chegar a hora da morte; estão trabalhando por aquilo que não satisfaz (Is 55.2); e a razão por que se conduzem dessa forma insana — perseguindo tão avidamente os prazeres deste mundo, que não rendem nada senão amargo remorso no mundo vindouro — é porque o seu coração é mau. Deus, na verdade, não tem lugar nos seus pensamentos, e em consequência Ele os entrega ao espírito de loucura. É preciso “olhos bons” — o coração decidido a agradar a Deus — para que a alma seja enchida com sabedoria celestial, que ama, busca e armazena as coisas celestiais. Essa sabedoria é algo que nenhuma escola ou universidade pode conceder: ela é “lá do alto” (Tg 3.17).

Também é preciso observar que o ensino de nosso Senhor sobre os “olhos bons” com “todo o corpo luminoso”, e os “olhos maus” com o “corpo todo em trevas” vem seguido imediatamente com o seguinte: “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom. {ou as riquezas}”[9] (Mt 6.24). Isso estabelece de imediato o significado dos versículos precedentes. Cristo estava falando (figuradamente) de colocar o Senhor de forma suprema diante do coração, o que necessariamente exige que se expulsem as preocupações mundanas e carnais. Os homens tentam misturar Deus e suas concupiscências, Deus e Mamom, Deus e os prazeres mundanos. Não! diz Cristo, ou Deus tem tudo ou não tem nada: aquele que serve a Deus tem de servir unicamente a Ele. Ah, meu leitor, você está disposto a pagar o preço necessário para obter a luz de Deus para o seu caminho?

É quase certo que muitos leitores estejam desapontados com nosso método de tratar este assunto, julgando que aquilo que dissemos até agora é muito diferente do que o título os levou a esperar de nosso texto. Não procuramos, neste artigo, entrar em detalhes específicos nem explicar como alguém deve agir quando alguma dificuldade ou súbita emergência lhe ocorre; em vez disso procuramos tratar de princípios básicos e demonstrá-los de forma exaustiva. Embora o professor possa satisfazer a curiosidade do aluno, nenhum bem prático lhe fará a exposição de um intrincado problema de matemática avançada, se o aluno ainda nem domina as regras elementares da aritmética. Dessa mesma forma estaria fora de ordem para nós, explicar como se deve lidar com casos e circunstâncias específicas antes de havermos compreendido as regras que devem guiar nosso andar costumeiro.

Até aqui, lidamos com duas coisas principais: a absoluta necessidade de, por fora, ser controlado pela Palavra de Deus; e, por dentro, um coração cujo único propósito é a glória de Deus, um coração que está inteiramente voltado a agradá-lO — se queremos a luz do céu iluminando o nosso caminho aqui na terra. Uma terceira consideração deve agora atrair a nossa atenção: a ajuda do Espírito Santo. Mas é justamente aqui que temos de tomar muito cuidado, caso contrário ou escorregaremos num misticismo vago, ou nos tornaremos culpados de extravagante fanatismo. Há muitos que se desviaram nas mais tolas e malignas direções com o pretexto de estarem sendo “movidos pelo Espírito”. Não há dúvida de que estavam sendo “movidos” por algum “espírito”, mas com certeza não era o Espírito Santo. Ele nunca move ninguém a proceder de forma contrária à Palavra. Nossa única segurança é trazer com imparcialidade nossos impulsos ou sugestões interiores ao teste das Santas Escrituras.

“Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8.14). O Divino Guia está perfeitamente familiarizado com o caminho ordenado por Deus para cada viajante celestial. Ele tem pleno conhecimento de todas as sinuosidades e estreitezas desse caminho, suas complexidades e perigos. Ser dirigido pelo Espírito é estar debaixo do Seu governo. Ele entende nossas tentações e fraquezas, conhece nossas aspirações, ouve nosso gemidos, e observa nossa luta por santidade. Ele sabe quando providenciar uma parada, aplicar uma repreensão, usar apropriadamente uma promessa, simpatizar com uma tristeza, fortalecer uma resolução vacilante, confirmar uma esperança hesitante. A firme promessa é: “ele vos guiará a toda a verdade” (Jo 16.13): isso Ele faz ao regular nossos pensamentos, afeições e conduta; ao abrir nosso entendimento para perceber o sentido das Escrituras, aplicando-as com poder ao coração, capacitando-nos a apropriá-las e colocá-las em prática. Dessa forma, toda vez que abrirmos o Volume Sagrado, humildemente e sinceramente busquemos o auxílio daquele que o inspirou.

É importante notar que Romanos 8.14 começa com a palavra “Pois” — o apóstolo introduz uma confirmação daquilo que estava afirmando nos versículos anteriores. Aqueles que não andam “segundo a carne, mas segundo o Espírito” (v. 4), aqueles “põem a sua mente nas coisas do Espírito”[10] (v. 5), aqueles que, pelo Espírito, mortificam “os feitos do corpo” (v. 13), esses são os “guiados pelo Espírito de Deus”. Ele é o “Espírito de santidade”, e como tal é Seu objetivo intensificar a impressão da imagem restaurada de Deus na alma, aumentando nossa alegria fazendo-nos mais santos. Dessa forma Ele “guia” a nenhuma outra coisa senão àquilo que santifica. O “Espírito Santo guia” ao subjugar o poder do pecado que em nós habita, afastando-nos do mundo, preservando em nós uma consciência tenra, atraindo o coração a Cristo, levando-nos a viver para a eternidade.

“Confia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas” (Pv 3.5-6). Repare bem na ordem: a promessa no final da passagem é condicionada à satisfação de três requisitos. Primeiro, temos de ter plena confiança no Senhor. O verbo hebraico traduzido como “confia” significa, literalmente, “apoiar-se em”: ele transmite a idéia de alguém que, ciente da própria debilidade, se apóia em alguém mais forte para receber amparo. “Confiar no Senhor” significa contar com Ele em qualquer emergência, confiar nEle para o suprimento de cada necessidade, é dizer com o salmista: “O SENHOR é o meu pastor; nada me faltará” (Sl 23.1). Significa que lançamos nossos cuidados sobre Ele, extraindo dEle força dia a dia e a cada hora, desta forma provando a suficiência da Sua graça. Para o cristão, significa continuar da mesma forma que começou: quando no início nos lançamos sobre Ele como pecadores perdidos, abandonamos todas as nossas obras e contamos com a Sua abundante graça. Conte agora com a Sua sabedoria, Seu poder e Sua graça.

Mas o que significa “Confia no SENHOR de todo o teu coração”? Primeiro, significa oferecer a Deus a nossa total confiança, não esperando de ninguém mais nem ajuda nem alívio. Em segundo lugar, significa voltar a Ele com simplicidade de criança. Quando um pequenino confia, não existe argumentação, mas uma simples consideração das palavras dos pais assim como eles as proferiram, com plena certeza de que o pai cumprirá o que disse; o pequenino não dá importância às dificuldades que possa haver no caminho, mas sua expectativa é o cumprimento daquilo que lhe foi prometido. Deve ser assim entre nós e as palavras do nosso Pai celestial. Em terceiro lugar, significa projetar nossas afeições nEle: o amor “tudo crê, tudo espera” (1Co 13.7). Assim, confiar no Senhor “de todo o coração” é a confiança do amor na segurança e na expectativa de uma criança.

O segundo requisito é “e não te estribes no teu próprio entendimento”, que significa que não devemos confiar em nossa própria sabedoria nem valer-nos das declarações da razão humana. O mais sublime ato da razão humana é repudiar a própria suficiência e dobrar-se diante da sabedoria de Deus. Descansar em nosso próprio entendimento é descansar numa vara quebrada, porque ele foi perturbado pelo pecado; contudo há muitos que consideram mais difícil repudiar a própria sabedoria do que abandonar a própria justiça. Muitos dos caminhos de Deus são inescrutáveis, e tentar entender os mistérios da Providência é procurar entender com a mente finita aquilo que é infinito, o que não só é pecado de presunção, mas também um atentado contra nosso próprio bem-estar. Filosofar sobre nossa sorte, argumentar sobre nossas circunstâncias — isso é fatal para o descanso da alma e para a paz do coração.

Em terceiro lugar, “Reconhece-o em todos os teus caminhos”. Isso significa, em primeiro lugar, que devemos suplicar a Deus permissão para tudo o que fazemos, e não agir sem a Sua licença; somente então nos conduziremos como filhos obedientes e como servos respeitosos. Significa, em segundo lugar, que buscamos a direção de Deus em cada empreendimento, reconhecendo nossa ignorância e confessando nossa completa dependência dEle. “... em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica” (Fp 4.6): é somente assim que reconhecemos, de forma prática, o senhorio de Deus sobre nós. Significa, em terceiro lugar, buscar a glória de Deus em todos os nossos caminhos: “fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31). Ah, se somente fizéssemos isso, quão diferentes não seriam muitos dos nossos “caminhos”! Se com mais frequência parássemos e perguntássemos: Isto é para a glória de Deus? com certeza seríamos guardados de muito pecado e de muita insensatez, com todas as suas dolorosas consequências. Em quarto lugar, significa procurar a bênção de Deus sobre tudo. Aqui está mais uma regra simples e eficaz: tudo aquilo sobre o que eu não posso pedir a bênção de Deus, está errado.

 “... e ele endireitará as tuas veredas”: satisfaça as três condições mencionadas acima, e aqui está a segura consequência. A necessidade de ser dirigido por Deus é real e forçosa. Se somos deixados por nossa própria conta, não somos melhores do que um navio desgovernado ou um veículo sem volante. Não é sem razão que o povo do Senhor é, tantas vezes, chamado de “ovelha”, pois nenhuma outra criatura tem tanta capacidade de se perder ou tamanha propensão para se desviar. A palavra hebraica usada para “endireitar” significa “tornar reto, plano”. Vivemos num mundo onde tudo é torto: o pecado desconjuntou todas as coisas, e, em consequência, a confusão, a depravação, a perturbação abundam ao nosso redor. Um coração enganoso, um mundo perverso, e um diabo ardiloso estão sempre procurando nos desviar e maquinar nossa destruição. Quanta necessidade temos, então, de que Deus “endireite nossos caminhos”!

O que significa “ ele endireitará as tuas veredas”? Significa que Ele vai deixar claro para mim o caminho da obediência. Aprendamos o seguinte, com muita firmeza: A “vontade” de Deus está sempre no caminho da obediência, e nunca se opõe a ela. Muita incerteza e perplexidade desnecessárias poderiam ser evitadas se apenas se reconhecesse diligentemente esse princípio. Quando você sente um forte desejo ou “mover” para furtar-se a um claro dever, pode estar certo de que é uma tentação vinda de Satanás, e não é a “direção” do Espírito Santo. Por exemplo, é contra a vontade revelada de Deus uma mulher constantemente participar de reuniões e com isso negligenciar os filhos e o lar. O marido estará se esquivando de sua responsabilidade se sair sozinho à noite, mesmo que alegue zelo e fervor religioso, deixando sua mulher cansada lavando a louça e pondo os filhos para dormir. É pecado o funcionário cristão ler a Bíblia ou “conversar com as pessoas sobre a alma delas” durante o serviço, no horário em que deveria estar no trabalho.

A dificuldade surge quando parece que temos de escolher entre duas ou mais responsabilidades, ou quando alguma mudança importante precisa ser feita em nossas circunstâncias. Há muitas pessoas que pensam que desejam ser guiadas por Deus quando alguma crise surge ou alguma decisão importante precisa ser tomada; mas são poucas que estão preparadas para atender os requisitos sugeridos nos parágrafos iniciais. O fato é que Deus raramente ocupava algum lugar em seus pensamentos antes de surgir a emergência: não se exercitaram em agradar a Deus enquanto as coisas estavam correndo bem para elas. Mas quando chegam as dificuldades e a tribulação, quando não sabem mais o que fazer e como agir, então subitamente se tornam muito piedosas, voltam-se ao Senhor, suplicam sinceramente que Ele as dirija, e querem saber claramente qual é a vontade dEle.

Mas não se pode pressionar a Deus dessa maneira. Em geral, essas pessoas tomam decisões precipitadas e se metem em dificuldades cada vez maiores, e então procuram consolar-se dizendo: “Bem, eu procurei a direção de Deus”. Ah, meu leitor, não se pode zombar de Deus dessa forma: se não levamos em consideração as Suas exigências quando o mar está calmo, não podemos contar com o Seu livramento quando chegar a tormenta. Aquele com quem haveremos de tratar é santo e Ele não vai premiar os ímpios (aqueles que por muitos são chamados de “descuidados”), mesmo que uivemos como feras angustiadas (Os 7.14). Por outro lado, se diligentemente procuramos graça para andar com Deus dia a dia, regulando nossos caminhos pelos Seus mandamentos, então poderemos com todo direito contar com o Seu auxílio em qualquer emergência que surgir.

Mas como deve o cristão consciencioso agir quando ele se depara com alguma emergência? Suponha que ele esteja numa encruzilhada: dois caminhos, duas alternativas estão diante dele, e ele não sabe qual escolher: o que ele deve fazer? Primeiro, deve prestar atenção na seguinte palavra, a qual, como regra geral, sempre nos diz respeito: “aquele que crer, não se apressará”[11] (Is 28.16). Agir impulsivamente não convém nunca a um filho de Deus, e precipitar-se antes do Senhor certamente é envolver-se em dolorosas consequências. “Bom é o SENHOR para os que esperam por ele, para a alma que o busca. Bom é aguardar a salvação (a libertação) do SENHOR, e isso, em silêncio” (Lm 2.25-26). Agir na pressa em geral significa que mais tarde nos haveremos de arrepender por muito tempo. Oh, quanto cada um de nós precisa suplicar todos os dias que o Senhor coloque sobre nossa febril carne a Sua mão que refrigera e acalma!

Em segundo lugar, busque o Senhor para que Ele esvazie o seu coração de todo plano que seja seu próprio. É impossível orarmos com sinceridade “Seja feita a Tua vontade”, até que nossa própria vontade tenha sido, pelo poder do Espírito Santo, trazida a uma completa sujeição a Deus. Enquanto houver uma preferência secreta (mas real e verdadeira) em meu coração, meu julgamento estará corrompido. Enquanto meu coração está de fato determinado em alcançar um certo objetivo, estarei meramente zombando de Deus quando Lhe peço que me mostre o Seu caminho; e com certeza interpretarei mal todas as Suas providências, torcendo-as para se adequarem ao meu próprio desejo. Se aparecer algum obstáculo em meu caminho, eu o considerarei como uma “prova de fé”; se alguma barreira for removida, concluirei prontamente que Deus está “lutando” por mim, quando na verdade Ele pode estar me testando, prestes a me entregar aos desejos do meu próprio coração (Sl 81.12)[12].

Esse é um ponto de extrema importância para aqueles que desejam de fato ter os seus passos “ordenados pelo Senhor”. Não podemos discernir o Seu melhor para nós enquanto o coração tiver sua própria preferência. Por isso é imperativo que roguemos a Deus que esvazie nosso coração de toda preferência pessoal, que remova qualquer desejo secreto estabelecido que seja nosso próprio. Mas muitas vezes está longe de ser fácil tomar essa atitude diante de Deus, ainda mais quando não estamos acostumados a procurar graça para mortificar a carne. Por natureza, cada um de nós quer o seu próprio caminho, e se irrita contra qualquer estorvo que apareça diante dele. Mas da mesma forma que uma película fotográfica precisa estar limpa para receber a impressão de uma figura, assim nosso coração tem de estar livre da sua própria inclinação, se quisermos que Deus opere em nós “tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13).

Se você perceber que, à medida que continua esperando em Deus, persiste a luta interior entre a “carne” e o “Espírito”, e você não alcançou o ponto em que pode dizer honestamente “Seja feita a Tua vontade, Senhor”, então  aconselhamos um tempo de jejum. Em Esdras 8.21, lemos o seguinte: “Então, apregoei ali um jejum junto ao rio Aava, para nos humilharmos perante o nosso Deus, para lhe pedirmos jornada feliz para nós, para nossos filhos e para tudo o que era nosso”. Isso está escrito para nossa instrução, e mesmo um rápido exame do texto basta para mostrar a sua pertinência à nossa presente questão. O jejum não é um exercício religioso peculiar apenas do Antigo Testamento, pois em Atos 13.3 somos informados que, antes de Barnabé e Saulo serem enviados para sua viagem missionária pela igreja de Antioquia, os irmãos, “jejuando, e orando, e impondo sobre eles as mãos, os despediram”. Não há nenhum mérito no jejum, mas ele expressa a humilhação da alma e a sinceridade do coração.

A próxima coisa é humilhar-se, e sinceramente reconhecer diante de Deus a nossa ignorância, rogando que Ele não nos deixe por nossa própria conta. Diga-Lhe com franqueza que você está perplexo e não sabe o que fazer, e que você merece ser deixado nesse doloroso aperto. Mas implore diante dele a Sua própria promessa, e suplique-Lhe por amor a Cristo que agora cumpra a seguinte promessa na sua vida: “Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-á concedida. Peça-a, porém, com fé, em nada duvidando” (Tg 1.5-6). Peça-Lhe que conceda a visão tão necessária, que você possa julgar corretamente, que você possa discernir claramente aquilo que vai promover o seu bem-estar espiritual, e consequentemente promover a glória de Deus.

 “Entrega o teu caminho ao SENHOR, confia nele, e o mais ele fará” (Sl 37.5). Enquanto você espera, não consulte carne e sangue: se você apelar aos companheiros cristãos em busca de conselho, é provável que nem mesmo dois deles terão a mesma opinião, e essa discordância de conselhos vai apenas confundir você. Em vez de olhar para o homem em busca de ajuda, “Perseverai na oração, vigiando com ações de graças” (Cl 4.2). Esteja atento à resposta de Deus: repare com cuidado cada movimento da Sua providência, porque assim como um cisco no ar indica a direção do vento, assim a mão de Deus pode ser muitas vezes discernida pelos olhos espirituais naquilo que para os outros são incidentes sem valor. “E há de ser que, ouvindo tu um estrondo de marcha pelas copas das amoreiras, então, te apressarás: é o SENHOR que saiu diante de ti” (2Sm 5.24).

Finalmente, lembre-se de que não precisamos apenas de luz do Senhor para descobrir o que é nossa obrigação em casos particulares, mas também, uma vez que obtivemos isso, também precisamos da Sua presença para nos acompanhar, de forma que sejamos capacitados para andar corretamente no caminho em que Ele nos ordena caminhar. Moisés estava ciente disso quando orou ao Senhor: “Se a tua presença não vai comigo, não nos faças subir deste lugar” (Êx 33.15). Se não temos a presença do Senhor conosco nalguma tarefa —  ou seja, Sua aprovação quanto a ela, Sua assistência na execução dessa tarefa, e Sua bênção sobre ela — então acabaremos descobrindo que ela é uma armadilha, ou talvez pior, uma maldição para nós.

Como regra geral, é melhor nos preocuparmos muito pouco com a “direção de Deus” —  isso é obra dEle: já o nosso negócio é andar em obediência a Ele dia a dia. À medida que o fazemos, forja-se dentro de nós uma prudência que nos haverá de preservar de erros graves. “Sou mais prudente que os idosos, porque guardo os teus preceitos” (Sl 119.100). O homem que guarda os preceitos de Deus torna-se favorecido com uma sabedoria que de longe ultrapassa aquela que possuíam os sábios da antiguidade ou os filósofos eruditos. “Ao justo, nasce luz nas trevas” (Sl 112.4). O homem justo pode experimentar seus dias de trevas, mas quando chega a hora da emergência, ser-lhe-á concedida luz da parte de Deus. Sirva a Deus com toda a sua força hoje, e você calma e seguramente pode deixar o futuro com Ele. Uma responsável conformidade ao que é correto certamente será seguida por um discernimento daquilo que não é certo.

Busque com sinceridade que o temor de Deus esteja firmado em seu coração, de maneira que você trema da Sua palavra (Is 66.2) e de fato você tema desagradá-lo. “Ao homem que teme ao SENHOR, ele o instruirá no caminho que deve escolher” (Sl 25.12). “Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e o apartar-se do mal é o entendimento” (Jó 28.28). “Conheçamos e prossigamos em conhecer ao SENHOR” (Os 6.3). Quanto mais crescemos em graça, mais plenamente será nosso conhecimento da vontade revelada de Deus. Quanto mais cultivarmos a prática de procurar agradar a Deus em todas as coisas, mais luz teremos para o nosso caminho. “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus” (Mt 5.8): se nosso motivo for certo, nossa visão será clara.

“A integridade dos retos os guia; mas, aos pérfidos, a sua mesma falsidade os destrói” (Pv 11.3). O homem reto não se desviará de propósito por caminhos tortuosos: o coração honesto não está confuso com paixões que o dominam, nem foi cegado por motivos corruptos: uma vez que tem uma consciência tenra, ele possui um aguçado discernimento espiritual; mas o tortuoso curso de ação dos maus os envolve em crescente confusão e redunda em sua ruína eterna. “A justiça dos perfeitos (sinceros) aplainará os seus caminhos, Mas o perverso cairá pela sua perversidade”[13] (Pv 11.5): um olho exclusivo para a glória de Deus nos livra das armadilhas em que caem os perversos. “Os homens maus não entendem o que é justo, mas os que buscam o SENHOR entendem tudo” (Pv 28.5). Paixões desordenadas e desejos não mortificados anuviam o entendimento e pervertem o julgamento até ao ponto em que os homens chamem “mal” ao que é bom, e “bom” ao que é mau (Is 5.20); mas àquele que procura estar sujeito ao Senhor será dado entendimento.

 “O SENHOR endireitará as tuas veredas”. Em primeiro lugar, por meio da Sua Palavra: não de forma mágica (para não encorajar a preguiça), nem como se consulta um livro de receitas para todas as ocasiões, mas nos advertindo dos desvios do pecado e da insensatez, fazendo-nos conhecer os caminhos da justiça e da bênção. Em segundo lugar, por Seu Espírito, dando-nos força para obedecer os preceitos de Deus, induzindo-nos a aguardar com paciência no Senhor para receber direção, capacitando-nos a aplicar as regras das Santas Escrituras às variadas obrigações da vida, trazendo-nos à lembrança a palavra certa para cada ocasião. Em terceiro lugar, por Suas providências, fazendo com que amigos falhem conosco, de forma que nos vemos livres de nos apoiar no braço da carne, frustrando nossos planos carnais, de forma que somos preservados de naufrágio, fechando portas por onde não seria bom entrarmos, e abrindo portas que ninguém pode fechar.


 



[1] A versão bíblica padrão usada nesta tradução é a Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil. As demais são identificadas em nota de rodapé. Todas as notas de rodapé são do tradutor.

[2] As versões do português não mostram a mesma nuança de significado. Contudo, o ensino do Autor procede.

[3] Ou, como traduz a versão dos Capuchinhos: “Não vos torneis néscios”. A versão da TEB, Tradução Ecumênica da Bíblia (Edições Loyola), diz: “Não sejais portanto sem juízo”.

[4] Versão da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil.

[5] A versão usada pelo Autor (King James) traz, em lugar de “moderação”, a expressão “a sound mind”, ou seja, “uma mente sã” — o que, de fato, produz “moderação” em todos os sentidos (ou “autocontrole”, como aparece em outras versões).

[6] Tito 2.10.

[7] 2Crônicas 16.9.

[8] Romanos 8.28.

[9] Versão Revista e Corrigida, da Sociedade Bíblica do Brasil.

[10] Tradução Brasileira, da Sociedade Bíblica do Brasil (Bíblia On-Line 3.0).

[11] Tradução Brasileira.

[12] Versão Revista e Corrigida.

[13] Tradução Brasileira.

 

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As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem (Jo 10.27).

 

 

Ao homem que teme ao SENHOR, Ele o instruirá no caminho que deve escolher (Sl 25.12).

 

 

Aplica-te ao estudo da Palavra.

 

Buscai o SENHOR enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto (Is 55.6).

 

 

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   Em tudo dai graças (1Ts 5.18).

 

 

Ao homem que teme ao SENHOR, ele o instruirá no caminho que deve escolher (Sl 25.12).

 

 

Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do SENHOR, que fez os céus e a terra (Sl 121.1-2)

 

 

 

 

     

A vereda dos justos é como a luz da aurora, que brilha mais e mais até ser dia perfeito (Pv 4.18)
 
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