Onisciência
C. H. Spurgeon
Sermão pregado em 15 de junho de 1856, dia do Senhor.
“Tu és Deus que me vê” (Gn 16.13)
Há mais olhos fixos nos homens do que eles estão cientes: o homem não vê da mesma forma que é visto. Ele pensa que está oculto e que passa despercebido, mas deve lembrar que uma nuvem de testemunhas o mantém sob a mais completa inspeção.
Não importa onde ele esteja, a cada momento, há criaturas cuja atenção se fixa no seu comportamento, e cujo olhar atento lhe acompanha as ações.
Eu tenho plena certeza de que, dentro deste templo, há miríades de espíritos invisíveis aos nossos olhos — espíritos bons e espíritos maus; esta noite, sobre nós, repousam os olhos dos anjos: com atenção esses espíritos perfeitos observam a nossa congregação; eles ouvem nossas canções; eles observam nossas orações; eles talvez voem para o céu para levar aos seus companheiros as notícias de quaisquer pecadores que nasceram de Deus, pois há alegria na presença dos anjos de Deus por causa de um pecador que se arrepende.
Milhões de criaturas espirituais andam por esta terra, enquanto andamos por aí e enquanto dormimos; o meio da noite está povoado por sombras invisíveis, e a luz do dia tem os seus espíritos também.
O príncipe das potestades do ar, por meio do seu grupo de maus espíritos, movimenta-se com rapidez pelo espaço celeste; os maus espíritos reparam em nossas hesitações a cada instante, enquanto os bons espíritos, batalhando pela salvação dos eleitos de Deus, nos guardam em todos os nossos caminhos e velam pelos nossos pés, para que em tempo nenhum tropecemos nalguma pedra.
Hostes de seres invisíveis se ocupam com cada um de nós em diferentes períodos da nossa vida. Temos de nos lembrar, também, que não somente os espíritos dos anjos, eleitos ou caídos, nos contemplam, mas “os espíritos dos justos aperfeiçoados” continuamente observam as nossas conversas. O apóstolo nos ensina que o nobre exército de mártires, e o glorioso grupo de fiéis são “testemunhas” da nossa corrida para os céus, quando diz o seguinte: “visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta”. Lá dos altos céus, os olhos daqueles que já foram glorificados voltam-se para nós; ali os filhos de Deus estão assentados em seus brilhantes tronos, observando se nós sustentamos corajosamente o estandarte pelo qual eles lutaram; eles observam a nossa coragem, ou detectam nossa covardia; e eles estão atentos, testemunhando nossos valorosos feitos de nobre audácia, ou nossa humilhante fuga no dia da batalha.
Lembrem-se disso, filhos dos homens, vocês não estão sozinhos; vocês não passam por este mundo em obscuro anonimato. Nas mais escuras sombras da noite, há olhos que os contemplam através das trevas. Na claridade do dia, há anjos acompanhando as suas atividades. Dos céus, você é contemplado por espíritos que veem tudo o que seres finitos são capazes de contemplar.
Mas se nós consideramos essa verdade como algo impressionante, há uma outra verdade que é infinitamente maior, como o oceano em comparação a uma simples gota d’água. Essa verdade é a seguinte: “Tu és Deus que me vê”.
Que os anjos me veem, isso não é nada. Que os demônios me vigiam, isso não é nada. Que os espíritos glorificados me observam, isso não é nada, comparado com a devastadora verdade que Deus me vê o tempo todo. Vamos concentrar-nos nisso agora, e que Deus o Espírito Santo possa usar nossas considerações para nossa edificação espiritual!
Em primeiro lugar, apresentarei a doutrina geral, que Deus vê todos os homens. Em segundo lugar, apresentarei a doutrina específica, ou seja: “Tu és Deus que me vê”. E em terceiro lugar, eu pretendo extrair dessa doutrina algumas inferências práticas e confortadoras para diferentes classes de pessoas aqui reunidas, para que cada uma possa aprender alguma coisa desta curta mensagem.
I. Em primeiro lugar, então, a doutrina geral, que Deus nos vê
1. Isso pode ser facilmente provado, pela própria natureza de Deus. Seria difícil conceber um Deus que não pudesse ver as próprias criaturas; seria extremamente difícil imaginar uma divindade que não pudesse contemplar as ações das obras das suas próprias mãos.
A palavra com que os gregos se referiam a Deus indicava que ele era um Deus que podia ver. Eles o chamavam de Theos; e essa palavra se deriva, se eu entendo corretamente, da raiz Theisthai (ver, enxergar), porque eles consideravam Deus como aquele que tudo vê, cujos olhos captam o universo inteiro num relance, e cujo conhecimento ultrapassa o dos mortais.
O Deus Altíssimo, por sua própria essência e natureza, necessariamente precisa ser onisciente. Elimine o pensamento de que ele me vê, e você destrói a Divindade de um só golpe. Não haveria Deus se ele não tivesse olhos, pois um Deus cego não seria Deus de forma nenhuma. Não há maneira de conceber um Deus assim. Por mais estúpidos que os idólatras possam ser, seria muito difícil pensar que mesmo eles modelassem um deus cego: mesmo eles dão olhos aos seus deuses, embora de fato esses deuses não vejam nada.
Jaganata (divindade hindu) tem olhos manchados de sangue; e os deus dos antigos romanos tinham olhos, e alguns deles eram chamados de deuses que enxergavam longe.
Até mesmo os pagãos têm dificuldade de conceber um deus que não tenha olhos para ver, e com certeza nós não somos tão doidos a ponto de imaginar por um momento sequer que possa existir uma Divindade sem o conhecimento de todas as coisas que o homem faz debaixo do sol. Eu lhes afirmo que é tão impossível conceber um Deus que não vê todas as coisas como é impossível conceber um quadrado redondo. Quando dizemos: “Tu és Deus”, na verdade encerramos na palavra Deus a ideia de um Deus que vê todas as coisas: “Tu és Deus que me vê”.
2. Contudo, além disso, estamos certos de que Deus nos vê porque as Escrituras nos ensinam que Deus está em todo lugar, e se Deus está em todo lugar, o que O impede de ver tudo o que é feito em cada parte do Seu universo?
Deus está aqui: Eu não só vivo perto dEle, mas “nele vivemos, e nos movemos, e existimos”. Não há um só milímetro deste enorme universo que não esteja preenchido por Deus: vá para o espaço, e não há um só lugar onde Deus não esteja. Em cada porção desta terra onde piso, e o lugar onde me movimento, ali está Deus.
Teu poder me envolve por completo;
Acordado, dormindo, aqui ou no exterior,
Tua mão, qual casa, me dá abrigo e teto;
Deus! ‘stás sempre ao meu redor.
Tome as asas da alvorada e voe para além da mais distante estrela; Deus está ali. Deus não está confinado a um só lugar, mas Ele está em todo lugar; Ele está aqui, e ali, e lá; na mais profunda mina que o homem jamais escavou; nas insondáveis cavernas do oceano; nas alturas, imponentes e altivas; nos mais profundos abismos, que nunca jamais se poderão alcançar; Deus está em todo lugar.
Por meio das Suas próprias palavras, eu sei que Ele é um Deus que enche a imensidão; os céus não são grandes o suficiente para contê-lO; Ele segura o sol com uma das mãos e a lua com a outra; Ele Se move pelo espaço celeste jamais navegado; onde as asas dos serafins jamais vibraram, ali Deus está.
Deus está em todo lugar. Imagine um lugar qualquer; ali Deus está.
Muito bem, se Deus então está em todo lugar, como posso deixar de crer que Deus me vê onde quer que eu esteja? Ele não me contempla à distância; se o fizesse, eu poderia me esconder nas sombras da noite; mas Ele está aqui, bem perto de mim, e não somente junto a mim, mas dentro de mim; dentro deste coração; onde estes pulmões se agitam; ou onde meu sangue jorra nas minhas veias; ou onde este pulso bate o ritmo, como tambor abafado, da minha marcha para a morte; Deus está ali: dentro desta boca; nesta língua; nestes olhos; em cada um de vocês Deus está; Ele está dentro de você, e em torno de você; Ele está ao seu lado, e atrás, e na frente.
Saber isso não é maravilhoso? Não é algo elevado, que você não consegue alcançar? Como é que você, então, consegue resistir a essa doutrina, que desce sobre você qual relâmpago, como raio: se Deus está em todo lugar, Ele forçosamente vê tudo, e por isso é verdade esta palavra: “Tu és Deus que me vê”?
3. Mas para que ninguém suponha que Deus possa estar nalgum lugar, mas dormindo, deixe-me lembrá-los que em qualquer lugar que vocês possam ir não é somente que Deus ali está, mas Deus ali atua.
A todo lugar que eu vou, encontro não um Deus adormecido, mas um Deus ativo, envolvido nos negócios deste mundo.
Se estou nalgum gramado, um agradável pasto, ali, em cada pequena lâmina de grama, está a mão de Deus, fazendo-a crescer; e cada pequenina margarida, que as crianças gostam de colher, eleva os pequenos olhos e diz: “Deus está em mim, fazendo circular minha seiva, e abrindo minhas pequenas pétalas”.
Vá aonde quiser aqui em Londres, onde dificilmente se encontra vegetação, levante os olhos para o alto e veja essa multidão de estrelas; Deus está ativo ali: é Sua mão que movimenta as estrelas, e faz a lua girar em seu curso noturno.
Mas se não houver nem estrelas nem lua, haverá as nuvens, escuras, como os carros da noite: quem os dirige pelo mar celeste? Não é o hálito de Deus soprando nelas, conduzindo-as pelos céus afora?
Deus está em todo lugar, não como um Deus estático, apático, mas como um Deus ativo.
Quando estou no mar, vejo Deus fazendo o eterno pulso da natureza bater em constante fluxo e refluxo. Se estou no mais longínquo deserto, ainda acima de mim grita a águia, e eu vejo Deus capacitando o voo das aves selvagens.
Posso estar na cabana mais isolada, de repente surge um inseto e eu vejo nele a vida que Deus preserva e sustenta; sim, isolem-me de toda a criação viva, e ponham-me na mais árida rocha, onde nem o musgo consegue sobreviver, e ali ainda vou discernir o meu Deus sustentando os pilares do universo, e mantendo aquela árida rocha como parte do colossal fundamento sobre o qual Ele construiu o mundo.
Reluzem teus radiantes passos
Onde quer que eu fixe os pasmos olhos
E contam de Ti a origem, gratas,
Dez mil maravilhas que se erguem aos molhos!
Ativas tribos de incontáveis formas
Na terra, no céu, e também no ar
As menores vidas, os menores vermes
Declaram todos Teu poder sem par.
Vocês deveriam ver Deus em todo lugar. Se não o veem ao seu redor, olhem dentro de vocês.
E não está Ele ali? Por acaso o seu sangue não está agora correndo em cada porção do seu corpo, indo e voltando ao coração? E não está Deus agindo ali? Vocês não sabem que cada pulsação sua precisa da permissão de Deus, e ainda mais, precisa da atuação do poder de Deus como sua causa? Vocês não sabem que cada movimento de respiração da sua parte precisa de Deus para inspirar e expirar, e que vocês certamente morrerão se Deus retiver esse poder?
Se pudéssemos olhar dentro de nós mesmos, veríamos as poderosas obras em ação nessa estrutura mortal — o vestuário da alma — que surpreenderia vocês, e os faria ver, de fato, que Deus não está dormindo, mas que Ele está ativo e trabalhando.
Há um Deus que trabalha em todo lugar, um Deus com os olhos abertos em todo lugar, um Deus com Suas mãos em ação em todo lugar; um Deus fazendo algo, não um Deus descansando, mas um Deus trabalhando.
Oh! Senhores, acaso essa convicção não relampeja em suas mentes com intensidade, contra a qual vocês não podem fechar os olhos, que — uma vez que Deus está em todo lugar, e em todo lugar está ativo — segue-se, como consequência necessária e inevitável, que Ele de fato nos vê, e conhece todas as nossas ações e nossas obras?
4. Tenho mais uma prova para lhes apresentar, que eu penso ser conclusiva. Deus nos vê, podemos estar certos disso, quando nos lembramos que Ele pode ver as coisas antes que aconteçam.
Se Ele contempla um evento antes que esse aconteça, somos forçados a admitir que Ele vê aquilo que está acontecendo agora.
Leia as profecias antigas, leia o que Deus disse que seria o fim de Babilônia e de Nínive; vá até o capítulo onde você lê o destino de Edom, ou onde nos é dito que Tiro será arrasada; então ande pelas terras do Oriente, e veja Nínive e Babilônia reduzidas ao pó, as cidades arruinadas; e então responda à questão: “Não é Deus um Deus de presciência? Não pode Ele ver as coisas que estão por acontecer?”
Oh! Não existe uma coisa sequer que haverá de acontecer nos próximos mil anos que já não seja passado para a infinita mente de Deus; não há uma ação que seja realizada amanhã, ou depois de amanhã, ou no próximo dia, por toda a eternidade, se os dias podem ser eternos: Deus conhece plenamente a todas elas. E se Ele conhece o futuro, não conhecerá o presente?! Se os Seus olhos veem através do obscuro nevoeiro que nos separa das coisas futuras, não pode Ele ver aquilo que acontece na luz do presente momento? Se Ele consegue ver à longa distância, não pode Ele ver o que está perto, à mão?
É evidente que esse Ser Divino que conhece o fim já desde o começo, com toda certeza conhece as coisas que ocorrem agora; e deve ser verdade que “Tu és Deus que me vê”, até mesmo a totalidade de nós, a totalidade da raça humana.
É isso o que tenho para dizer a respeito dessa reconhecida doutrina geral e universal.
II. Agora, em segundo lugar, chego à doutrina específica: “Tu és Deus que me vê”
Há uma desvantagem em pregar a tantos ouvintes de uma só vez, porque sempre há quem pense: “Ele não está falando comigo”.
Em certa ocasião, Jesus Cristo pregou com muito sucesso um sermão quando havia uma só pessoa ouvindo, porque a mulher samaritana a quem ele falou não tinha como dizer que Cristo estava pregando para a vizinha dela. Ele disse à samaritana: “Vai, chama o teu marido e volta aqui”. Alguma coisa ali moveu o coração dela; ela não conseguiu esquivar-se e confessou a própria culpa.
Mas quanto às nossas congregações, é possível que o antigo orador veja seu pedido atendido: “Amigos, romanos, patrícios, emprestem-me os seus ouvidos”, pois quando o evangelho é pregado, emprestamos nossos ouvidos a todo mundo. Estamos acostumados a ouvir para nossos vizinhos, e não para nós mesmos. Eu não tenho nada contra você emprestar alguma coisa aos outros, mas sou inteiramente contra você emprestar seus ouvidos; ficarei grato se você conservá-los consigo por um minuto ou dois, pois pretendo fazer vocês ouvirem para si mesmos a seguinte verdade: “Tu és Deus que me vê”.
Preste atenção, Deus vê você — qualquer um e cada um desta congregação — Ele vê você, Ele vê você como se não houvesse ninguém mais no mundo para quem Ele pudesse olhar.
Se eu tiver de olhar para todas as pessoas que estão aqui, é evidente que minha atenção terá de ser dividida; mas a mente infinita de Deus é capaz de captar um milhão de objetos ao mesmo tempo, e concentrar-se em todos eles ao mesmo tempo, como se não houvesse nenhum outro, mas apenas um; de forma que você, esta noite, está sendo olhado por Deus como se em todo espaço não houvesse nenhuma outra criatura senão apenas você. Você consegue conceber isso?
Suponha que as estrelas se tenham apagado na escuridão; suponha que os anjos tenham morrido; imagine que todos os espíritos glorificados no céu se tenham retirado, e que você tenha sido deixado sozinho, o último homem, e aí está Deus olhando para você. Que impressão lhe causaria o pensamento de que você é o único a ser observado! Quão calmamente Ele poderia observar você! Como você se tornaria bem conhecido por Ele! Mas preste atenção: Deus de fato olha para você esta noite dessa exata maneira, dessa forma completa, dessa forma absoluta, sem distrações, como se você fosse o único ser que as Suas mãos tivessem feito. Você consegue compreender isso? Deus vê você com todos os Seus olhos, com todo o alcance da Sua vista — você — você — você — você é o objeto particular da Sua atenção neste exato momento. Os olhos de Deus estão contemplando você! Lembre-se disso!
Em seguida, Deus vê vocês por completo. Ele não apenas percebe as suas ações; Ele não observa simplesmente a aparência do seu rosto; Ele não apenas contempla a sua postura física; mas lembre-se, Deus vê aquilo que vocês estão pensando; Ele vê lá dentro. Deus tem uma janela no coração de cada homem, através da qual Ele olha; Ele nem pede que vocês Lhe digam o que estão pensando — Ele pode ver isso, Ele pode ler através de vocês.
Vocês não sabem que Deus pode ler o que está escrito nas rochas do fundo do oceano, mesmo que estejam envoltas em dez mil braças[4] de águas escuras? E eu lhes afirmo que Ele consegue ler cada palavra que está no peito de cada um; Ele conhece cada pensamento, cada imaginação, cada ideia; sim, até mesmo cada imaginação ainda não bem formulada, o pensamento que acabou de ser disparado do arco, guardado na aljava da mente; Ele vê tudo, cada partícula, cada átomo dele.
Ainda lutando pra nascer, meus pensamentos,
Ó grande Deus! São de Ti conhecidos:
Quer longe, quer perto, ‘stou
Na Tua imensidade imergido.
Olho pra trás, ali Tu estás:
Diante de mim, reluz Teu nome;
É a Tua forte e onipotente mão
Sustentando-me a mim, frágil homem.
Vocês conseguem apropriar-se desse pensamento? Do topo da cabeça à planta dos pés, Deus os está examinando agora; o bisturi dEle está agora no peito de vocês, no seu coração. Ele está sondando o seu coração e pondo à prova os seus rins; Ele conhece vocês por trás e por diante. “Tu és Deus que me vê”. Tu me vês por completo.
Repare também que Deus vê vocês sempre, constantemente. Às vezes, vocês são observados por homens, e nessas ocasiões a sua conversa é toleravelmente correta; noutras ocasiões, vocês se encontram isolados, e se entregam a coisas que não ousariam fazer se estivessem sendo observados por outras pessoas.
Mas lembrem-se, onde quer que vocês estejam, Deus os vê; vocês podem refugiar-se nalgum lugar escondido no meio do mato, onde as árvores cobrem a sua presença da vista de todos, onde tudo é quieto, sem nenhum barulho — Deus está ali, observando vocês! Vocês podem recolher-se ao seu quarto, fechar as cortinas, e deitar para descansar na mais espessa escuridão da meia-noite — Deus vê vocês ali!
Eu me lembro quando entrei num castelo algum tempo atrás, descendo várias escadas em caracol, dando voltas e voltas, voltas e voltas, onde jamais penetrou luz alguma; por fim cheguei a um lugar bem pequeno, onde mal cabia um homem. “Aqui” — disse o guardião — “mantinha-se uma pessoa qualquer por vários anos, sem jamais penetrar um raio de luz: às vezes a pessoa era torturada, mas os seus gritos jamais conseguiam atravessar a espessura destas paredes, e nunca subiam as escadas em caracol. Aqui a pessoa morria; e ali, senhor” — disse ele apontando o chão — “a pessoa era enterrada”.
Mas embora esse homem não tivesse ninguém na terra que o visse, Deus o via. Sim, vocês podem me trancar para sempre, onde nenhum ouvido jamais ouça a minha oração, onde nenhum olho jamais veja a minha miséria. Mas um olho haverá de me ver, e uma face haverá de sorrir para mim, se eu estiver sofrendo por causa da justiça. Se por causa de Cristo eu estou preso, haverá sobre mim uma mão, e uma voz me dirá: “Não temas; Eu te ajudo”. Em todo o tempo, em todos os lugares, em todos os seus pensamentos, em todas as suas ações, em todo o seu isolamento, em todas as suas ações públicas, em todas as épocas, isto é verdadeiro: “Tu és Deus que me vê”.
Contudo, uma vez mais, “Tu és Deus que me vê” de forma completa. Eu consigo me ver, mas não tão bem quanto me veem meus amigos e meus inimigos. As pessoas conseguem me ver melhor do que eu mesmo consigo, mas os homens não conseguem me ver como Deus me vê.
Uma pessoa experiente em assuntos do coração humano talvez possa explicar minhas ações e interpretar meus motivos, mas ela não consegue ler meu coração como Deus pode fazê-lo. Ninguém consegue conhecer os outros como Deus nos conhece a todos; nós não conhecemos a nós mesmos como Deus nos conhece. Com todo nosso autoconhecimento, com tudo aquilo que os outros dizem a nosso respeito, Deus conhece vocês mais plenamente do que vocês conhecem a si mesmos; nenhum olho consegue ver vocês como Deus os vê — vocês podem agir à luz do dia; podem não se envergonhar de suas ações, podem colocar-se diante dos homens, e dizer: “Eu sou um homem público, quero ser observado e noticiado”. Vocês talvez vejam publicadas todas as suas atividades, e todos os homens talvez ouçam a respeito delas, mas eu sei que os homens jamais conhecerão vocês como Deus os conhece.
Se vocês fossem aprisionados como Paulo o foi, preso pelo braço a um soldado; se ele estivesse com vocês dia e noite, dormindo com vocês, levantando-se com vocês; se ele pudesse ouvir os seus pensamentos, ele ainda não os conheceria como Deus os conhece, pois Deus os vê de forma inigualável, de forma completa.
Quero aplicar isso, agora, a vocês: “Tu és Deus que me vê”. Isso é verdade a respeito de cada um de vocês; tente pensar nisso por um momento. Da mesma forma que meus olhos se fixam em vocês, assim, num sentido muito, muito maior os olhos de Deus se fixam em vocês.
Se vocês estiverem de pé, sentados, onde quer que estejam, isto é verdade: “Tu és Deus que me vê”. Dizem que quando você ouvia Rowland Hill[1], se você estivesse ao lado de uma janela, ou até mais longe, na porta, você sempre tinha a certeza de que ele estava pregando para você em particular. Se eu pudesse separar você da multidão e dirigir-lhe cada palavra pessoalmente, então eu teria a esperança de produzir algum efeito. Tente pensar nisto, então: “Tu és Deus que me vê”.
III. Apresento-lhes agora algumas inferências distintas, apropriadas para pessoas diferentes e para finalidades diferentes
Primeiro, àqueles que costumam orar. Homens que oram, mulheres que oram, eis aqui um consolo — Deus vê vocês, e se Ele pode vê-los, Ele com toda certeza pode ouvi-los.
Muitas vezes podemos ouvir as pessoas, mesmo sem conseguir vê-las. Se Deus está tão perto de nós, e se a voz dEle é como trovão, é evidente que os Seus ouvidos são tão bons quanto os Seus olhos, e Ele com toda certeza responderá às suas orações. Talvez vocês não consigam dizer uma só palavra quando estão orando. Não faz mal; Deus não precisa ouvir; Ele pode dizer-lhes o que vocês pretendem exprimir meramente olhando para vocês. “Ali” — diz o Senhor — “está um filho meu em oração. Ele não diz uma só palavra; mas você consegue ver aquela lágrima escorrendo na sua face? Você consegue ouvir aquele suspiro?” Oh! Poderoso Deus, Tu consegues ver tanto a lágrima como o suspiro; Tu consegues ler o desejo quando o desejo ainda não se revestiu de palavras. Deus consegue interpretar o desejo nu; Ele não precisa que iluminemos nossos desejos com a candeia da linguagem; Ele consegue ver a candeia antes que seja acesa.
“Ele conhece as palavras que anelamos dizer,
Quando de nossos lábios não conseguem sair,”
em virtude da angústia de nosso espírito. Ele conhece o desejo, quando as palavras vacilam sob o peso dele; Ele conhece o anelo quando a linguagem falha em expressá-lo. “Tu és Deus que me vê.”
Ah, Deus, quando eu não consigo orar com palavras, quero lançar-me com o rosto em terra, e gemer a minha oração; e se eu não conseguir gemer a oração, quero suspirá-la; e se não conseguir suspirar, quero desejá-la. E se essa sequência visível se romper, e quando a morte cerrar estes lábios, entrarei no céu com uma oração, que Tu não ouvirás, mas haverás de ver — a oração do meu espírito mais interior, quando meu coração e minha carne falharem, que Deus possa ser a força da minha vida e a minha porção para todo o sempre.
Há conforto para vocês, vocês que oram, Deus vê vocês. Isso é o bastante; se vocês não conseguem falar, Ele consegue vê-los.
Acabei de dirigir uma palavra aos que oram. Agora, dirijo uma palavra aos ansiosos. Alguns aqui estão cheios de preocupações, e dúvidas, e ansiedades, e medos. “Oh! Meu senhor” — dirão vocês — “se você visse a minha pobre casa, entenderia por que estou tão cheio de preocupações. Fui obrigado a vender um bom tanto dos meus móveis para conseguir sobreviver, vivo muito humildemente. Não tenho um amigo em Londres, estou sozinho, sozinho neste vasto mundo”. Pare! Pare, meu amigo! Você não está sozinho no mundo; há, no mínimo, um olho reparando em você. Há uma mão pronta a socorrê-lo. Não se entregue ao desespero. Se a sua situação é tão extremamente ruim, Deus vê a sua preocupação, suas tribulações, e as suas ansiedades. Para um bom homem, basta que ele veja a penúria alheia para socorrer o necessitado. E para Deus é suficiente ver as aflições da Sua família para, de imediato, suprir as suas necessidades.
Se você estivesse caído no campo de batalha, ferido, se não conseguisse falar, você saberia com certeza que os seus companheiros que estão vindo com uma maca haveriam de socorrê-lo, se apenas o vissem ferido; e isso tranquilizaria você, seria suficiente. Assim, se você está caído no campo de batalha da vida, Deus vê você; deixe essa certeza animá-lo; Ele vai socorrer você. Basta que Ele veja as feridas dos Seus filhos, para imediatamente socorrê-los.
Vá em frente, então; continue esperando; na hora mais escura da noite, espere um amanhecer mais brilhante. Deus está vendo; o que quer que você esteja fazendo,
“Ele conhece os seus cuidados, lágrimas, suspiros;
Ele com certeza fará você erguer a cabeça.”
E agora, uma palavra aos que estão sofrendo calúnia. Alguns de nós estão sofrendo grande e intensa calúnia e difamação. É muito raro o mercado da calúnia estar em baixa. Normalmente seus juros crescem de forma astronômica; e há pessoas que compram as suas ações a qualquer preço. Se os homens conseguissem desfazer-se das ações da bolsa de valores como conseguem fazê-lo com a calúnia, aqueles que neste culto tivessem a sorte de estar com a papelada para efetuar a transferência, estariam ricos amanhã ao meio-dia. Há pessoas que possuem uma superabundância dessa matéria; estão constantemente ouvindo rumores disto, daquilo, e daquiloutro; e há sempre um tolo ou outro que não tem miolos suficientes para escrever com bom senso, nem honestidade suficiente para conservá-lo na verdade, e por isso mesmo escreve as mais infamantes calúnias sobre alguns dos servos de Deus, comparado com quem o autor do artigo não é ninguém, e a quem por mera inveja ele decide depreciar.
Bem, o que isso importa? Suponha que você seja caluniado; eis aqui um conforto: “Tu és Deus que me vê”. Eles dizem que os seus motivos são tais e tais, mas você não precisa responder. Você pode dizer: “Deus conhece o assunto”.
Você é acusado de tal e tal coisa, da qual você é inocente; o seu coração é íntegro quanto a esse assunto, você nunca fez tal coisa. Bem, você não precisa lutar por sua reputação; a única coisa que precisa fazer é apontar o dedo para o céu, e dizer: “Há uma testemunha ali, que me defenderá no final — há um Juiz de toda a terra, cuja decisão eu aguardo com satisfação; a Sua resposta será a minha completa absolvição, e eu sairei da fornalha como ouro sete vezes purificado”.
Meu jovem, você está se esforçando por fazer o bem, e os outros lhe atribuem motivos errados? Não se desgaste tentando responder. Siga em frente, e a sua vida será a melhor refutação dessa calúnia.
Os irmãos de Davi disseram que ele veio ver a batalha por causa do orgulho e da perversidade do coração dele. “Ah!” — pensou Davi — “Daqui a pouco eu vou lhes dar a resposta”. E lá se foi ele pela campina, para lutar contra Golias; cortou-lhe a cabeça, e então retornou aos seus irmãos com uma gloriosa resposta na sua mão vitoriosa. Se alguém pretende replicar às falsas declarações dos seus inimigos, que se dedique a fazer o bem, e não precisará dizer uma só palavra — isso será a sua resposta.
Eu sou alvo de maledicência, mas posso apontar centenas de almas que têm sido salvas na terra por meio da minha fraca instrumentalidade, e minha resposta a todos os meus inimigos é esta: “Vocês podem dizer o que quiserem; mas quando veem esses homens aleijados serem curados, vocês têm alguma coisa a dizer contra eles? Talvez vocês encontrem defeitos com o estilo ou as maneiras, mas Deus salva as almas, e nós queremos apresentar-lhes esse fato, como a cabeça do gigante Golias, para mostrar-lhes que, embora a arma dele não passasse de uma funda e uma pedra, e tanto melhor assim, pois foi Deus quem obteve a vitória”.
Ande retamente, e você fechará a boca dos que o caluniam. E lembre-se, quando estiver na maior aflição: “Tu és Deus que me vê”.
Agora, uma sentença ou duas a alguns de vocês que são descrentes e não conhecem a Cristo. O que posso dizer a vocês senão isto: Quão horríveis são os seus pecados, quando colocados na luz desta doutrina! Lembre-se, pecador, que não importa quando você peca, você peca na presença de Deus, contra Ele. É muito ruim roubar quando está escuro, mas é um miserável ladrão aquele que rouba à luz do dia. É mau, é muito perverso cometer um pecado de forma escondida, mas praticar o meu pecado quando alguém está olhando demonstra muita dureza de coração. Ah! Pecador, lembre-se, você peca com os olhos de Deus fitando você. Quão escuro deve ser o seu coração! Que terrível é o seu pecado! Porque você peca diante da face da própria justiça, quando os olhos de Deus estão fixos em você.
Outro dia, parei para observar uma colmeia de abelhas num recipiente de vidro, e foi extraordinário observar a movimentação das abelhas ali dentro. Bem, este mundo não é mais do que uma enorme colmeia dentro de um vidro transparente. Deus olha para você, e o vê por completo. Você entra nos pequenos alvéolos das ruas desta enorme cidade; você se dirige ao trabalho, aos lugares de lazer, ao lugar de devoção, e aos seus pecados. Mas lembre-se, onde quer que você vá, você é como as abelhas dentro de um grande globo de vidro, você nunca jamais consegue escapar da observação de Deus.
Quando as crianças desobedecem na frente dos pais, isso mostra que estão endurecidas. Se desobedecem às escondidas de seus pais, isso prova que ainda resta um pouco de vergonha nelas. Mas vocês, senhores, pecam quando Deus está presente com vocês; vocês pecam enquanto os olhos de Deus estão examinando vocês por completo. Mesmo agora vocês abrigam pensamentos duros a respeito de Deus, enquanto Ele está ouvindo todas essas declarações silenciosas dos seus corações perversos. Isso não torna os seus pecados extremamente odiosos?
Por essa razão, eu lhes suplico: pensem nisso, e arrependam-se da sua perversidade, para que os seus pecados sejam apagados por meio de Jesus Cristo.
Mais um pensamento. Se Deus vê você, ó pecador, como será fácil, para Ele, condenar você.
No recente e horrível caso Palmer, foram necessárias testemunhas, e se formou um júri para julgar o acusado. Mas se o juiz pudesse assentar-se na tribuna e dizer: “Eu mesmo vi o homem misturando o veneno; eu estava junto quando ele deu o veneno à vítima; eu li os pensamentos dele; eu sei a razão por que o assassino fez o que fez; eu li o seu coração; eu estava junto dele quando pela primeira vez concebeu o plano sombrio, e eu o segui em todos os seus subterfúgios, em tudo que ele fez com o objetivo de ofuscar a justiça; e eu consigo ler no coração dele que ele sabe agora mesmo que é culpado”. Dessa forma, o caso estaria encerrado; o julgamento seria pouco mais do que uma formalidade.
O que você acha, ó pecador, quando for trazido à presença de Deus, e Ele disser: “Você fez isto e isto e isto”, e mencionar aquilo que você fez na escuridão da noite, quando olho nenhum havia ali? Você retrocederá surpreso, e dirá: “Oh, céus! Como é que Deus sabe? Haverá conhecimento no Altíssimo?” Então Ele dirá: “Pare, pecador! Eu tenho muito mais ainda para atemorizar você”, e Ele começará a revelar os registros do passado: página por página Ele vai ler do diário que registrou da sua existência. Oh! Eu posso ver você à medida que Ele lê cada página, seus joelhos batendo um no outro, seus cabelos em pé, o sangue gelar nas suas veias, gelar de terror, e você, como Níobe[2], uma rocha banhada de lágrimas. Você está perplexo ao ver seus pensamentos lidos à luz do sol, perplexo enquanto homens e anjos ouvem. Você está totalmente assombrado ouvindo as suas ideias sendo lidas, vendo as suas ações fotografadas no grande trono branco, e ouvindo a voz dizendo: “Rebelião em tal época; impureza em tal ocasião; pensamentos maus em tal hora; pensamentos desagradáveis a respeito de Deus neste período; rejeição da Sua graça neste dia; problemas com a consciência neste outro tempo”. E assim por diante, até o fim do capítulo, e então a terrível sentença final: “Pecador, aparte-se, maldito! Eu vi você pecando; não há necessidade de testemunhas; Eu ouvi você praguejando; Eu ouvi as suas blasfêmias; Eu vi você roubando; Eu li os seus pensamentos. Aparte-se! Aparte-se! Eu sou justo quando julgo você; estou plenamente justificado quando o condeno, pois você fez o que era mau diante dos meus olhos”.
Por último, vocês me perguntam o que precisam fazer para serem salvos; e eu não pretendo, eu espero jamais deixar uma congregação enquanto não lhes explicar isso. Ouçam, então, em poucas palavras, o caminho da salvação. É o seguinte: Cristo disse aos apóstolos: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado”. Ou, para lhes dar a versão de Paulo, quando falava com o carcereiro: “Crê no Senhor Jesus e serás salvo”. Vocês me perguntarão o que é que devem crer. Ora, crer o seguinte: que Cristo morreu e ressuscitou novamente; que, por meio da Sua morte, Ele sofreu a punição de todos os crentes; e que, por meio da Sua ressurreição, Ele apagou os pecados de todos os Seus filhos. E se Deus lhe der fé, você crerá que Cristo morreu por você; e será lavado no Seu sangue, e você confiará na Sua misericórdia e amor para serem a sua redenção eterna quando o mundo chegar ao fim.
[1] Pregador inglês. Viveu de 1744 a 1833.
[2] Níobe, personagem da mitologia grega, filha de Tântalo e mãe de Anfião. Transformada em rocha, ainda assim chorava a perda dos catorze filhos, vertendo sempre água numa nascente.
As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem (Jo 10.27).
Ao homem que teme ao SENHOR, Ele o instruirá no caminho que deve escolher (Sl 25.12).
Aplica-te ao estudo da Palavra.
Buscai o SENHOR enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto (Is 55.6).
Onde está, ó morte, o teu aguilhão? (1Co 15.55)
Orar bem é estudar bem.
Seca-se a erva, e cai a sua flor, mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente (Is 40.8).
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Em tudo dai graças (1Ts 5.18).
Ao homem que teme ao SENHOR, ele o instruirá no caminho que deve escolher (Sl 25.12).
Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do SENHOR, que fez os céus e a terra (Sl 121.1-2)
A vereda dos justos é como a luz da aurora, que brilha mais e mais até ser dia perfeito (Pv 4.18)
Deus tudo vê
Não temais, pequenino rebanho.